Antes de ser conhecido por uma patologia, nasci e me batizei com o nome de Francisco Faustino Pinto e permaneci assim atĂ© os meus 18 anos de idade. Nesse momento, minha alcunha mudou: recebi um novo nome ao ser diagnosticado com hansenĂase. Me chamaram de Leproso.
Percebi que naquela unidade de saĂșde era sĂł mais um nĂșmero em um prontuĂĄrio mĂ©dico. Ao passar pelas portas daquele posto de saĂșde, tinha a impressĂŁo de estar passando por um ritual de morte em vida, algo tĂŁo marcante no sĂ©culo 15, mas o ano era 1989. Quando ouvi a palavra hansenĂase pela primeira vez nĂŁo me parecia algo ruim. O mĂ©dico que suspeitou da doença havia me dado informaçÔes objetivas e eu compreendi, fui ao outro serviço de saĂșde com o entendimento do que significava a patologia, e que deveria tomar os medicamentos e ter os cuidados necessĂĄrios para ficar curado. Estava de posse de todas as informaçÔes de que precisava, sem medo.
Me encaminharam para uma enfermeira que dava as boas e as mĂĄs notĂcias, ela me fez uma pergunta que ao mesmo tempo respondeu: âVocĂȘ sabe o que Ă© HansenĂase? Ă a mesma Lepraâ. NĂŁo entendi por que ela me trouxe tal informação adicional. Uma atitude que parecia ter a intenção de intimidar, uma tentativa abusiva de me fazer lamentar o que se passava comigo, aquela ação traduzia qual seria o meu lugar na sociedade a partir daquele momento.
O que veio em seguida me apavorou. A profissional de saĂșde seguia com o que ela achava ser um atendimento humanitĂĄrio e de qualidade, dizia: âVocĂȘ nĂŁo pode deixar de tomar os remĂ©dios, nĂŁo pode faltar as consultas ou abandonar o tratamento, porque vocĂȘ pode ficar deformado, essa doença cai pedaçosâ. InformaçÔes que eram importantes, sim, para o meu tratamento, mas jamais ditas daquela forma e naquele contexto.
Aquele dia havia começado como uma grande alegria para mim, porque o diagnĂłstico da doença significou o fim de uma peregrinação de nove anos em que eu passei por muitos mĂ©dicos e tratamentos e nenhum diagnĂłstico correto. Mas esse alĂvio e alegria iniciais, em questĂŁo de horas se transformaram em algo assustador, um pesadelo. As informaçÔes acerca da patologia hansenĂase, que tinham finalmente esclarecido sobre minha situação e me deixado tranquilo momentos antes, viraram algo bizarro, uma vida sem muitas perspectivas. Esse Ă© o poder destruidor de uma Ășnica palavra, Lepra, um poder devastador na vida de um indivĂduo. Conheço relatos onde pessoas apenas pelo fato de ouvi-la entraram em pĂąnico, ficaram deprimidas, se isolaram.
Me recordo de um episĂłdio muito marcante, estava em casa doente e nĂŁo pude ir ao posto de saĂșde pegar os meus medicamentos, pedi a minha mĂŁe que fosse atĂ© lĂĄ. Ao chegar, minha mĂŁe esqueceu o nome da doença. Como eu tenho desvio de septo nasal e naquela Ă©poca sagrava bastante, era disso que ela lembrava, entĂŁo disse: âVim pegar os medicamentos do meu filho, ele tem um problema no narizâ. A resposta dada a minha mĂŁe veio rĂĄpida e cruel âAqui nĂŁo tratamos de doença de nariz, o que seu filho tem Ă© lepraâ. A sala de entrega de medicamentos tinha vĂĄrias pessoas, minha mĂŁe ficou muito constrangida. Parecia que a profissional de saĂșde tinha uma necessidade imensa em gritar tĂŁo fortemente a palavra LEPRA, e conseguiu fazer minha mĂŁe voltar pra casa muito triste.
Falar de Lepra Ă© condicionar as nossas vidas a um passado cruel que insiste em nos rodear, Ă© falar de exclusĂŁo, confinamento, de famĂlias separadas e vidas destroçadas, Ă© viver apegado a livros antigos e citaçÔes que nĂŁo hĂĄ sentindo nem razĂŁo em existir nos dias atuais, Ă© um apego muito forte a esse passado. HĂĄ quem justifique o uso do termo lepra em virtude do que consideram uma dificuldade de entendimento da população sobre o termo hansenĂase ou sugerindo que palavra hansenĂase diminui a importĂąncia da doença. Eu nĂŁo concordo com nenhuma dessas afirmaçÔes, a vida Ă© um eterno aprendizado, entĂŁo os membros da comunidade podem aprender e aprender de novo e de novo. Precisamos de profissionais que tenham empatia pela dor das pessoas atingidas pela hansenĂase, que dispensem um pouco do seu tempo para ajudar nesse entendimento. A palavra hansenĂase, se acompanhada de informaçÔes detalhadas sobre a doença, nĂŁo diminui a importĂąncia dos danos causados pela patologia. Mas a outra palavra, a Lepra, mesmo se acompanhada das melhores intençÔes, Ă© capaz de causar estragos tĂŁo grandes quanto os que a prĂłpria doença produz â porque Ă© uma palavra que carrega desinformação desde o princĂpio de seu uso.
Algumas pessoas dizem que devemos usar o termo lepra porque Ă© bĂblico, e que devemos seguir o que Deus nos ensinou. Sendo assim, serĂĄ que nĂŁo temos pecadores entre os âpurosâ? Segundo a BĂblia Ă© pecado, por exemplo, trabalhar aos SĂĄbados, ter uma tatuagem, cortar o cabelo/fazer a barba, fazer sexo antes do casamento, comer carne de porco, se divorciar, falar sem autorização do marido,usar roupas de diferentes tecidos, comer frutos do mar, entre outros.
Ă fato que essas proibiçÔes nĂŁo encontram mais sentido em nossa sociedade, como tambĂ©m nĂŁo vejo sentido em se referir a uma doença lançando mĂŁo de uma terminologia ultrapassada, vinda de uma lĂngua âmortaâ...
Concordar com o termo Lepra como significado de doença Ă© aceitar pra sua vida o peso dos seus significados, Ă© se declarar impuro, imundo, Ă© admitir que ser atingido pela hansenĂase foi fruto de desobediĂȘncia divina, dos seus pecados, das suas falhas enquanto ser humano. Ă trazer pra si as dores do mundo, enquanto na verdade vocĂȘ sĂł foi vĂtima de negligĂȘncia. NegligĂȘncia do poder pĂșblico que deveria prover cuidados e uma saĂșde pĂșblica fortalecida, negligĂȘncia em consequĂȘncia da fome, da misĂ©ria, de governos que nos invisibilizam, que nos fazem pedir aos Deuses que nos enxerguem, jĂĄ que os homens nos esquecem.
Na BĂblia, o termo Lepra significa, sujeira, descamação, castigo divino, vĂcios, impureza, podridĂŁo e outros sinĂŽnimos que nĂŁo se aplicam Ă doença de Hansen. Por conta disso, em 1976, o mĂ©dico e professor de Dermatologia da Escola Paulista de Medicina AbrahĂŁo Rothenberg propĂŽs a mudança de terminologia de lepra para hansenĂase. Houve uma grande resistĂȘncia de adesĂŁo Ă nova nomenclatura advinda dos profissionais de saĂșde. No entanto, nĂŁo havia resistĂȘncia da comunidade, como nĂŁo hĂĄ atĂ© os dias atuais. Em 1995, com o apoio do MORHAN â Movimento de Reintegração das pessoas atingidas pela HansenĂase, o entĂŁo presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso assina a lei 9010 que proĂbe o uso do termo lepra como significado de doença.
A partir dessa lei, iniciou-se um duro e contĂnuo processo de reeducação da população no Brasil. Infelizmente, ainda temos alguns poucos resistentes a essa nomenclatura, e ainda nos causa espanto quando esses sĂŁo profissionais de saĂșde, que insistem na cultura do medo como forma de adesĂŁo ao tratamento, se apegam a uma palavra com um significado que nĂŁo traduz os sinais e sintomas da doença de Hansen. Entendo que as mudanças nĂŁo sĂŁo fĂĄceis, que requerem reflexĂŁo, tempo e vontade de mudar. Mas Ă© preciso mudar. JĂĄ se passaram mais de 2000 anos e muita coisa mudou, trabalhamos aos sĂĄbados, temos tatuagens, cortamos o cabelo, fazemos a barba, sexo antes do casamento, comemos carne de porco, nos divorciamos, mulheres nĂŁo precisam de autorização do marido para falar, usamos roupas de diferentes tecidos e cores, comemos frutos do mar, entĂŁo por que essa insistĂȘncia em usar essa nomenclatura, dessa lĂngua morta, desse livro antigo, que te marca, te discrimina e te coloca em uma posição a margem da sociedade? NĂŁo existe dignidade no termo lepra, nĂŁo existe beleza, reflitam e se libertem dessa prisĂŁo linguĂstica, permitam-se, abram a mente, deixem-na livre, Ă© inevitĂĄvel... O novo sempre vem.
Vice-Coordenador Nacional do MORHAN â Movimento de reintegração das Pessoas Atingidas pela HansenĂase
Ativista LGBTQI+
Criador e blogueiro no canal Vozes Coloridas